Scroll infinito: uma nova droga digital
Quando iniciei a especialidade de psiquiatria, Portugal, juntamente com os EUA e vários países europeus, estava assolado por uma praga de toxicodependência, provocada pelo consumo de heroína. Esta droga, que prometia o prazer imediato, revelou-se altamente aditiva, capturava na sua teia inúmeras vítimas, destruindo-lhes não apenas o cérebro como também as suas vidas. A heroína deixou marcas profundas nas famílias e apagou anos de vida daqueles estiveram sob a sua dependência.
Atualmente, de acordo com os dados da Data Reportal, a nível global o número de utilizadores de redes sociais cresceu de cerca de 2 mil milhões em 2015 para mais de 5,4 mil milhões em 2025, abrangendo quase dois terços da população mundial. O tempo passado nas redes sociais não para de aumentar entre os adolescentes e jovens. Os adultos também não escapam a esta migração massiva para o mundo digital.
A estratégia das redes sociais é captar a nossa atenção o mais tempo possível para obter lucros através da publicidade e da informação obtida pelo nosso perfil de consumo. Para o efeito, o algoritmo adapta-se aos nossos gostos, procurando oferecer conteúdos personalizados. O scroll infinito corresponde à ação de deslizar a página, com o dedo no ecrã do telemóvel ou através do rato do computador, para se visualizar os conteúdos. O menu de conteúdos para além de ser personalizado é infindável, garantindo assim uma permanência online teoricamente infinita. Ou seja, esta é uma estratégia viciante que garante ao utilizador toda a “droga digital” necessária para o manter agarrado ao ecrã de forma ininterrupta.
Como é que isto acontece? O mecanismo de adição é realizado através das vias de recompensa dopaminérgicas no cérebro, ativando este sistema através da libertação de dopamina de forma repetida. Esta lógica de funcionamento nas redes sociais não é neutra, pois está cuidadosamente desenhada com base em mecanismos de reforço dopaminérgico intermitente, inspirados em estudos da neurociência e psicologia comportamental, com o objetivo de maximizar o tempo de utilização aumentando os lucros obtidos através de publicidade direcionada.
A estimulação repetida pode condicionar o cérebro a preferir experiências digitais em detrimento das experiências do mundo real, levando a uma dependência comportamental. Além disso, a nossa capacidade de atenção fora do mundo digital está a ficar comprometida. Conheço algumas pessoas, outrora leitores compulsivos, que agora são incapazes de manter a concentração numa leitura por mais de vinte minutos. Acabam por ser interrompidas por várias notificações e mostram-se incapazes de resistir a ler no telemóvel uma mensagem recebida ou de verificar se a sua última publicação já teve reações dos seguidores. O contacto constante com estímulos rápidos dificulta o desenvolvimento de um pensamento estruturado e crítico.
O scroll infinito está a tornar-se na nova droga digital, porque é viciante e está a comprometer, entre outros aspetos, as nossas capacidades cognitivas, particularmente a atenção. Os dados sustentam o efeito aditivo. Progressivamente, é preciso passar mais tempo nas plataformas para obter o mesmo grau de satisfação, ao mesmo tempo que se torna difícil reduzir ou controlar o número de horas conectados. Mesmo tendo consciência dos prejuízos físicos, emocionais e sociais associados, muitas pessoas continuam a dar preferência a estar online, abandonando antigos interesses e contactos presenciais face a face.
A utilização excessiva das redes sociais, para além de causar danos cognitivos, está a criar um número crescente de “zombies digitais”. Esta expressão tem sido utilizada para ilustrar a vivência de muitos destes jovens: profundamente conectados online, mas progressivamente alheados e apáticos quando offline. Este embotamento afetivo também é observado pela utilização prolongada das drogas, o que nos deve fazer refletir para que se promova uma utilização responsável e moderada das redes sociais.
Tal como a heroína arruinou vidas e famílias inteiras nas décadas passadas, também o scroll infinito cria uma nova dependência digital, ameaçando corroer silenciosamente a saúde mental e emocional de milhões de utilizadores. Se outrora combatíamos uma droga química, hoje enfrentamos uma droga invisível que se infiltra pelos ecrãs e que, pela repetição dopaminérgica, subjuga a nossa mente. A diferença é que, ao contrário da heroína, esta nova droga digital é legal, gratuita e está disponível no bolso de cada criança, adolescente ou jovem. Importa alertar para esta dependência silenciosa, pois precisamos de coragem coletiva para travar o alastrar deste vício moderno que pode causar danos no nosso cérebro e fragiliza as relações sociais.
Artigo publicado no Observador >>
Agostinho Abrunhosa
Membro da Direção, Diretor do AESE Executive MBA e Professor de Operações, Tecnologia e Inovação
Rendas controladas, Incentivos e Escolhas
Luís Cabral
Professor da Universidade de Nova Iorque e colaborador da AESE Business School e da Nova SBE
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“Comecem, façam, mexam-se, não há tempo para esperar e ter a solução perfeita, e o que estamos a tentar desenvolver são sistemas que melhoram com o tempo.” Manuela Veloso, Head of JP Morgan Chase AI Research