AESE insight #93 - AESE Business School - Formação de Executivos

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Theranos: onde acaba o sonho e começa o crime?

Leonor Castel Branco

Investigadora Cátedra de Ética na Empresa e na Sociedade AESE/EDP

Parece que foi ontem. Grávida de 8 meses, estava sentada numa sala de espera do centro de saúde aguardando que me chamassem, nervosa com a quantidade de análises que mais uma vez teria de fazer em jejum. Não era a primeira vez que tinha de fazer aquela quantidade de análises nesta gravidez, uns sete tubos de colheita, mas desta vez tinha as bolachas à mão, caso voltasse a desmaiar. Lembrei-me de Elizabeth Holmes e da sua promessa de tecnologia revolucionária que permitiria realizar centenas de análises com uma só gota de sangue. Seria de facto tão conveniente para mim naquele momento… Mas a promessa de Holmes tinha falhado redondamente e, enquanto eu esperava pelas inevitáveis análises, ela esperava a sua sentença de prisão.

Tudo começou em 2003 quando a jovem Elizabeth Holmes, com apenas 19 anos, deixou o seu curso em Stanford por concluir e fundou a start-up Theranos, uma empresa de análises de sangue sediada em Silicon Valley. Holmes afirmava com convicção que tinha desenvolvido uma tecnologia que permitia realizar uma ampla gama de exames médicos usando apenas uma pequena quantidade de sangue retirada da ponta do dedo do paciente. Aquela jovem visionária rapidamente revelou ser também uma extraordinária mulher de negócios, com a capacidade de atrair centenas de milhões de dólares de investimentos e grandes parcerias de negócio sem nunca ter verdadeiramente demonstrado as capacidades da tecnologia com que sonhava. Em apenas 11 anos esta start-up tinha angariado US$ 900 milhões de dólares e contava com mais de 800 colaboradores. Em 2015, a Forbes considerou Elizabeth Holmes a bilionária self-made mais jovem e rica nos Estados Unidos da América, atribuindo uma avaliação de US$ 9 biliões à Theranos.

No entanto, soube-se mais tarde que esta tecnologia não funcionava como prometido, e que a Theranos estava a utilizar máquinas de teste de sangue disponíveis comercialmente para realizar a maioria dos seus testes. Começando por denúncias de colaboradores, em apenas um ano várias revelações de fraude levaram a Forbes a reavaliar o património de Elizabeth Holmes para zero. Holmes e o seu COO, Sunny Balwani, foram indiciados por várias acusações de fraude e conspiração em 2018 e, em 2021, Elizabeth Holmes foi considerada culpada por quatro acusações de fraude e conspiração, estando agora iminente uma pena de mais de 11 anos de prisão.

O caso Theranos tem atraído muita atenção dos media nos últimos anos. Tal como meio mundo, e devido ao forte interesse que tenho por casos de ética empresarial, também eu me vi mergulhada na Internet a pesquisar sobre este caso: existem livros, documentários, podcasts, notícias, artigos e até uma série de televisão sobre o caso. Custava-me a crer que uma fraude como esta pudesse ter chegado tão longe, e enganado gente tão inteligente e experiente. A própria Elizabeth Holmes tornou-se uma personagem fascinante – uma jovem brilhante com o sonho de melhorar o conforto de análises de sangue e, em último caso, poder salvar vidas com diagnósticos precoces. Há inúmeras opiniões e especulações sobre as intenções e percurso desta mulher de negócios. Mas para mim é me difícil acreditar que Holmes tenha sido mal-intencionada desde o início. Mas então, qual foi a linha que ela ultrapassou e permitiu esta fraude escalar e depois explodir? Onde é que ela perdeu a integridade?

Um empreendedor com uma visão revolucionária deve ter uma dose de “loucura” e pôr todo o seu empenho em cumprir essa visão. A captação de bons investimentos e parcerias quando há alguma evidência de que o produto irá existir também é aceitável e é necessário para lá chegar. Mas neste caso vários engenheiros, químicos e outros especialistas altamente qualificados a trabalhar na Theranos, avisaram Elizabeth da impossibilidade absoluta de atingir uma tecnologia com as características e conveniência que ela prometia. Ou seja, houve um momento em que ela se terá apercebido de que não ia chegar ao produto final, mas continuou a agir como se já lá tivesse chegado. Chegou até a manipular ou forjar resultados de testes para esconder falhas na tecnologia perante investidores e empresas parceiras. Vemos assim um defraudar consciente de todos os stakeholders, desde os colaboradores aos investidores.

E é aqui, no desrespeito pelas entidades e pessoas que rodeavam a Theranos, que vemos um risco ético muito claro: para Holmes os fins justificaram os meios. Olhemos para alguns exemplos.

Para os colaboradores da Theranos, por exemplo, era no início vista como uma líder carismática, visionária, que inspirava lealdade e dedicação. No entanto, quando se começaram a levantar dúvidas sobre a eficácia da tecnologia da empresa, Elizabeth Holmes começou, alegadamente, a tornar-se cada vez mais controladora, criando uma cultura de secretismo, medo e paranoia dentro da empresa. Entrevistas a antigos colaboradores mostram isto claramente: descrevem um ambiente de trabalho tóxico, em que a crítica não era tolerada, e em que Holmes exigia lealdade e compromisso totais por parte do staff.

Quanto aos grandes investidores, contaram sempre com uma relação muito próxima da parte de Holmes. Eles tinham sido atraídos pela sua visão de uma tecnologia de análises de sangue revolucionária. No início estavam entusiasmados com o potencial da empresa e investiram generosamente nela. No entanto, quando começaram a surgir preocupações sobre a precisão e eficácia da tecnologia, alguns investidores começaram a questionar se a empresa conseguiria cumprir as suas promessas. Apesar destas preocupações, Holmes continuou a assegurar aos investidores que a Theranos estava prestes a atingir resultados inéditos, e muitos continuaram comprometidos com a empresa. Mas no fim, a verdade sobre as práticas fraudulentas da Theranos veio a público, e muitos investidores perderam somas consideráveis.

Além dos grandes investimentos, Elizabeth Holmes conseguiu várias parcerias de negócio para a Theranos, algumas com empresas de grande visibilidade nos EUA como a Walgreens ou a Safeway. Eram parcerias muito lucrativas nas quais a Theranos se comprometia a fornecer serviços de análises ao sangue. No início, estas parcerias trouxeram muita publicidade à Theranos e foram vistas como sinais da credibilidade e potencial da start-up, fazendo crescer ainda mais a sua visibilidade. No entanto, quando surgiram questões sobre a precisão da tecnologia, muitas das parcerias foram revistas e depois dissolvidas. Holmes foi acusada de fazer declarações falsas e enganosas aos parceiros de negócio, ao exagerar nas descrições e capacidades da tecnologia da Theranos. Este escândalo acabou não só por prejudicar a reputação de Elizabeth Holmes, mas também a de muitas empresas e pessoas associadas à start-up.

Também os reguladores foram desprezados pela CEO da Theranos. Elizabeth Holmes minimizou as questões legais, e procurou sempre dar a volta e evitar resposta aos pedidos de informação dos reguladores, preocupados com a precisão dos testes.

Por fim, também os pacientes ficaram a perder, apesar de todo o “sonho inicial” ser a pensar neles. Elizabeth Holmes apresentou ao mercado a sua tecnologia de análise de sangue como uma maneira de dar aos pacientes o acesso a testes rápidos, fáceis e confiáveis com apenas uma gota de sangue retirada da ponta do dedo. Os pacientes foram cativados pela conveniência e potencial poupança de custos que os serviços da Theranos ofereciam, e muitos confiaram que a empresa fornecia resultados precisos e corretos. No entanto, quando as dúvidas sobre a tecnologia começaram a surgir, muitos pacientes começaram a questionar a exatidão dos resultados dos seus exames. Não se sabe ao certo a quantidade de danos que foram causados por testes médicos imprecisos, mas uma das consequências deste escândalo foi sem dúvida a consciência dos riscos que tecnologia médica pouco testada traz para a segurança dos pacientes.

Olhar para o percurso de Elizabeth Holmes, desde o começo, à ascensão e até à queda, leva a importantes reflexões sobre a vida das empresas. No caso da Theranos, Holmes assumiu riscos elevados ao continuar a promover a sua tecnologia mesmo sabendo que era impossível atingir o que prometia. Elizabeth Holmes não olhou a meios para seguir as suas ambições, e a sua mentira estendeu-se não só aos investidores, mas também aos clientes, parceiros e aos seus próprios colaboradores. Talvez Holmes tenha acreditado que todas estas ações eram necessárias para atingir um fim bom. Mas ao cometer ações desonestas e antiéticas, Elizabeth Holmes já estava a violar os princípios por trás de querer melhorar o sector da saúde e salvar vidas.

A Theranos não conseguiu que os processos de análises ao sangue fossem agilizados e simplificados. Provavelmente ainda terei de fazer muitas análises ao sangue. Mas quando as fizer, lembrar-me-ei de que para um negócio florescer é preciso mais do que uma boa imagem e atração de investimentos. Pelo contrário, essa imagem deve corresponder a um percurso de integridade e a uma preocupação verdadeira por todos os intervenientes do negócio. Só assim é possível preservar uma conduta ética de boa reputação.



Para saber mais:
Livro Bad Blood: Fraude multimilionária em Silicon Valley, de John Carreyrou
Documentário da HBO The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley (2019)

O Estado da Transformação Digital em Portugal

Jorge Ribeirinho Machado
Professor e Responsável Académico da Área de Operações, Tecnologia e Inovação da AESE Business School

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