Incentivos e Escolhas
A crise da habitação é, fundamentalmente, uma crise de oferta. Em 2002, foram construídos em Portugal 125.700 fogos. Em 2022, apenas 20.156
Não é surpresa para ninguém que Portugal atravessa uma crise de habitação. Como acontece noutros casos, é relativamente simples — e simplista — encontrar um bode expiatório. Neste caso, a versão mais corrente é que isto é tudo culpa dos americanos que roubam as casas às famílias pobres portuguesas.
No entanto, uma leitura atenta dos dados mostra que a crise da habitação é, fundamentalmente, uma crise de oferta. Em 2002, foram construídos em Portugal 125.700 fogos. Em 2022, apenas 20.156 (dados do Pordata).
Quão longe vão os anos do princípio do século. Num artigo publicado neste jornal a 23 de Junho de 2007, lia-se que “se se construíssem todos os fogos admitidos pela totalidade dos planos directores municipais, o rectângulo nacional daria para o quádruplo da população”, ao que se acrescentava a opinião de que “Isso é um absurdo. Um completo absurdo”.
Estamos perante um problema de incentivos: os impostos sobre propriedade e transacção de imóveis correspondem à principal fonte de rendimento do poder local, o que por sua vez implica uma propensão — uma propensão exagerada, argumentava-se — para o licenciamento. Absurdo ou não absurdo, o que aconteceu desde então foi que, na sua versão seguinte, os Planos Directores Municipais (PDM) criaram restrições significativas à construção. Como se isso não chegasse, apareceram múltiplas outras normas que, no seu conjunto, levantaram um muro regulatório mais alto e mais longo do que a muralha da China.
Como este é um sector que conheço mal, e seguindo o princípio de que “a imitação é o maior elogio”, cito aqui o excelente artigo de Paulo Martins Barata no “Público” de 23 de Janeiro. Além do travão que foram os PDM, temos de acrescentar as “restrições estatutárias das zonas de RAN (Reserva Agrícola Nacional), REN (Reserva Ecológica Nacional), Parques Naturais, Rede Natura 2000”, e ainda “as Cartas de Perigosidade dos Incêndios”.
A lista não fica por aqui. Segundo Martins Barata, o “edifício legislativo que regula os licenciamentos da construção foi crescendo num amontoado inorgânico de leis, regulamentos e portarias, que soma mais de 2500 à data”. Resumindo e concluindo, “por imposição legal, hoje é quase impossível construir habitação económica”.
Não tenho muito a acrescentar ao diagnóstico, além de recomendar a leitura do artigo no “Público”.
Este marasmo de “sobre-regulação” — que não é único no sector da construção — sugere a pergunta: porquê?
Não existe uma resposta única. No entanto — e consciente do meu viés de economista, reflectido no título desta coluna —, creio que se trata em grande parte de um problema de incentivos e escolhas. O legislador que determina valores mínimos para a construção tem todo o interesse em garantir a qualidade das habitações aprovadas sob o seu regime (o que é louvável). Tem também um forte incentivo em se precaver contra possíveis acusações de que não foi suficientemente rigoroso (o que é compreensível). Pelo contrário, tem relativamente poucos incentivos para ponderar os custos que o seu rigorismo implica sobre terceiros (o que é um grande problema).
O outro incentivo do regulador é mostrar trabalho. Digo com frequência, e em tom de brincadeira, que se o Governo criasse uma Secretaria de Estado de Portas e Janelas, seria uma questão de dias até aparecerem as primeiras portarias (trocadilho à parte) sobre dimensão de portas e janelas. Caso contrário, como justificar a existência da Secretaria de Estado?
Só assim se explica, por exemplo, que em Portugal “um T3 tem obrigatoriamente de ser ventilado em duas fachadas e as zonas de dormir têm de ser segregadas das zonas sociais”, ou que “todos os quartos, salas e cozinhas têm de estar equipados com ficha de internet e de televisão”.
Note-se que isto são apenas três imposições num conjunto de cerca de 2500.
Confesso que não estudei em pormenor nem o Programa Mais Habitação nem os programas partidários respeitantes à habitação. Com base no que li, vejo muitas sugestões sobre incentivos à procura (e.g., isenção de impostos na compra de casa) ou regulação dos mercados (e.g., arrendamento local). Muito pouco, ou mesmo nada, sobre o problema de raiz, que é um problema de regulação e dos efeitos que a regulação tem na oferta.
Os Planos Directores Municipais criaram restrições significativas à construção e apareceram múltiplas outras normas que levantaram um muro regulatório mais alto e mais longo do que a muralha da China
Artigo publicado no Expresso
Artigo do Público
Luís Cabral escreve de acordo com a antiga ortografia