Afonso Barbosa
Professor de Contabilidade Financeira, Contabilidade de Custos, Sistemas de Planeamento e Controlo de Gestão da AESE Business School
A União da Poupança e dos Investimentos e as Ferramentas para a sua Implementação
A Comissão Europeia (CE) lançou uma nova estratégia, a União da Poupança e dos Investimentos (SIU – Savings and Investments Union), que visa promover uma superior participação dos cidadãos da União Europeia nos mercados de capitais e, em simultâneo, agilizar o financiamento de investimentos produtivos na economia da região.
Com esta iniciativa, a CE procura endereçar dois temas críticos para o futuro da União Europeia:
- Fomentar o investimento de longo prazo dos cidadãos, pela maior alocação da poupança em instrumentos financeiros com mais risco, mas com superior retorno potencial
As famílias europeias têm, aproximadamente, 70% da sua poupança investida em depósitos bancários, produtos com retorno nominal normalmente baixo, e com um retorno real (ajustado da inflação) quase sempre negativo. Uma tão baixa participação dos aforradores europeus no mercado de capitais (muito inferior à existente nos EUA) gera uma desvantagem estrutural no que respeita ao crescimento da sua riqueza, situação mais grave quando enquadrada pelas conhecidas dificuldades (por questões demográficas, entre outras) de sustentabilidade nos sistemas de Segurança Social e consequente necessidade crítica de reforçar a componente privada de poupança para a reforma. - A União Europeia terá, nas próximas décadas, elevadas exigências de investimento em áreas como as da transição energética e do reforço da produtividade média (e competitividade) das economias, em acréscimo ao investimento estratégico no rearmamento dos países
Neste contexto, as autoridades europeias, e a maioria dos países europeus, entendem que não é possível responder a todos estes desafios, em simultâneo, apenas com o recurso a fundos públicos, sendo necessária uma superior mobilização de recursos privados para investimentos produtivos nas economias.
A identificação destas necessidades estratégicas, bem como as óbvias interligações potenciais entre ambas, é o motivo pelo qual a SIU é hoje encarada como um imperativo político para os próximos anos, razão pela qual temos assistido, nos últimos meses, a um vasto conjunto de iniciativas legislativas da CE, bem como o incentivo desta à promoção de reformas pelos países-membro, nas áreas que são da sua exclusiva responsabilidade (por exemplo, ao nível das necessárias medidas fiscais).
De forma simplificada, a SIU será alicerçada em quatro áreas de atuação:
- Poupança: pela criação das contas europeias de poupança e investimento (SIA – saving and investment accounts), bem como pela adoção, ou estímulo à adoção pelos países membro, de um conjunto de medidas para a diversificação dos investimentos, de estímulo fiscal à poupança e investimento, bem como de reforço da literacia financeira dos cidadãos europeus. Embora com distintos patrocinadores, pensadas para objetivos mais abrangentes e com superior flexibilidade, de alguma forma, as SIA assumem objetivos estratégicos próximos aos que orientaram a criação das contas ‘401k’ americanas há quase 20 anos.
- Investimento e Financiamento: visa promover um superior nível de acesso das empresas a financiamento produtivo, por exemplo, incentivando as instituições financeiras através de uma revisão dos requisitos de capital regulatório das mesmas.
- Escala e Integração: por reconhecer um nível de fragmentação do setor financeiro superior ao existente em outros blocos geográficos, a CE propõe um conjunto de medidas que facilitem uma superior integração e consolidação entre players europeus.
- Supervisão do mercado: são propostas medidas para uma superior capacidade de supervisão nos mercados financeiros, por exemplo, promovendo um reforço de competências dos supervisores europeus (em detrimento da supervisão nacional) e a implementação de instrumentos de supervisão uniformes (cross-border).
O sucesso na implementação da União da Poupança e dos Investimento dependerá da capacidade de negociação política – crítica, considerando a complexidade no alinhamento dos países em ‘sede europeia’, bem como as competências exclusivamente nacionais em alguns tópicos relevantes – e também da eficácia das ferramentas legislativas e regulatórias que a vão operacionalizar.
É neste contexto que se insere a discussão em torno da Diretiva Retail Investment Strategy (RIS), iniciativa legislativa da CE lançada em maio de 2023, muito discutida ao nível do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa ao longo do ano 2024, mas com um contorno bem menos mediático no corrente ano. Na verdade, nos últimos meses o processo negocial da RIS não parou, mas foi, de alguma forma, encapsulado no lançamento da União da Poupança e dos Investimentos, mantendo-se como peça transformacional incontornável, pelo facto de um dos objetivos críticos da União ser, precisamente, o do aumento significativo da participação dos aforradores no mercado de capitais.
Devemos recordar que os objetivos primários da RIS são os de assegurar o reforço (i) nas condições para que investidores de retalho (ou não profissionais) tenham acesso à informação que permita a escolha de produtos e serviços de acordo com as suas preferências e necessidades, bem como (ii) dos mecanismos de proteção e tratamento adequado por parte de produtores e distribuidores de produtos e serviços de investimento. Ou seja, a RIS procura assegurar um nível de tratamento e proteção similar, independente do tipo de produtos e das formas de distribuição.
A CE propôs um conjunto de eixos de ação para a Diretiva RIS, desde logo, com exigências acrescidas ao nível da informação a prestar pelos players do setor aos investidores de retalho, bem como ao nível da promoção e práticas comerciais. Mas mais importante do que estas exigências, relevantes essencialmente ao nível dos requisitos operacionais, são as alterações propostas com impacto ao nível do modelo de negócio de produtores e distribuidores:
- Conflitos de interesse e os incentivos à distribuição: embora não tenha proposto a proibição do pagamento de incentivos (retrocessões) à distribuição, a CE introduz essa inibição em vendas sem aconselhamento associado, obrigando ainda os distribuidores, entre outras medidas, à realização de testes de atuação no interesse dos clientes.
- Novo modelo de aconselhamento na distribuição: a proposta reforça a exigência de análise, pelo distribuidor, da adequabilidade do produto, teste realizado antes da venda e considerando a pertinência da oferta ao portefólio do investidor (i.e o resultado do teste pode inibir a concretização da transação). Em acréscimo, o aconselhamento será suportado num conjunto alargado de produtos financeiros adequados às necessidades do cliente concreto, obrigando à recomendação daquele que apresentar a melhor relação custo-benefício (value for Money).
- Análise custo-benefício e aprovação de produtos e preço: a proposta da CE obriga o player, no âmbito do lançamento ou revisão de um produto de investimento, a identificar o seu mercado-alvo, a quantificar os custos de produção e de distribuição, bem como o retorno esperado no longo prazo. Obriga ainda à sua comparação com benchmarks de custos e performance desenvolvidos pela ESMA ou pela EIOPA. Em caso de desvio negativo, o produto será identificado como tendo uma má relação custo-benefício, não podendo, por princípio, ser distribuído ou recomendado.
Estas propostas, que se reforçam mutuamente, terão impactos materiais na indústria da poupança e investimento, forçando alterações profundas nos modelos de negócio dos diversos tipos de intervenientes. Mas antes de sumariar os impactos mais prováveis, convém evidenciar o atual status da negociação na União Europeia.
Durante 2024, tanto o Parlamento Europeu quanto o Conselho da Europa promoveram múltiplas propostas de alteração à proposta inicial, nomeadamente (i) a suavização de algumas medidas, como não inibir o pagamento de incentivos à distribuição em vendas sem aconselhamento, ou não inibir a comercialização de produtos com uma má relação custo-benefício, e (ii) a preservação (em alguns casos, o reforço) dos testes ao nível do conflito de interesses, do novo modelo de aconselhamento e da análise de Value for Money a partir de benchmarks de referência.
Como referido, a negociação não está ainda concluída, mas os tópicos que parecem, neste momento, ser consensuais são os seguintes:
- Incentivos à distribuição: proibição efetiva do pagamento de incentivos em caso de vendas sem aconselhamento associado; em vendas com aconselhamento, a aplicação de testes de atuação no melhor interesse do cliente, mas como ferramenta geral de back-office (não em tempo real, cliente a cliente).
- Análise custo-benefício: acordo nos princípios do Value for Money e na utilização de uma estrutura de análise normalizada; responsabilidade da ESMA e da EIOPA pela construção e atualização dos benchmarks de referência, a utilizar pelos supervisores locais; produtos com uma má relação custo-benefício não têm a sua distribuição automaticamente inibida; regras de governação ao nível do desenvolvimento de produtos e da sua revisão regular.
- Marketing e divulgação de informação: abordagem simplificada, ‘digital-first’, aos documentos de informação essencial dos produtos; divulgação padronizada e detalhada dos custos (incluindo incentivos ao distribuidor) e o seu efeito na rentabilidade para o cliente.
Naturalmente, tendo a negociação componentes técnicas e políticas, devemos manter uma perspetiva ampla em relação à configuração final da Diretiva RIS. Por outro lado, aparenta ser um processo em fase muito avançada de negociação, com conclusão prevista para o final de 2025. Algumas recomendações dos supervisores europeus para que os players no setor iniciem a análise dos impactos da RIS – com a realização de gap analysis ao nível dos modelos de negócio, processos operacionais e infraestrutura tecnológica – é um sinal claro nesse sentido.
É também um sinal de que as autoridades estão conscientes de que a RIS vai ter impactos materiais nos processos, tecnologia e gestão de recursos humanos, mas que terá um impacto ainda mais relevante ao nível do negócio, da forma como os players se posicionam no mercado e se relacionam com os seus clientes.
De facto, a RIS terá um impacto muito forte ao nível do modelo de negócio dos vários intervenientes na indústria, ao nível dos distribuidores e, nomeadamente, das ‘fábricas’ de produtos financeiros. Sumariamente, os impactos antecipados mais importantes serão os seguintes:
- Proposta de valor: com a inibição dos incentivos no negócio de execução simples, os distribuidores terão de evoluir para uma oferta baseada em serviços de aconselhamento e/ou de gestão discricionária. E terão de o fazer nos vários segmentos de clientes, com comissionamento explícito de tais serviços (por motivos económicos). Por outro lado, vai gerar alterações na oferta dos produtores, com a evolução para produtos menos complexos e a redução na oferta global por efeito dos critérios de elegibilidade e das regras de aconselhamento; forçará os produtores a uma crescente especialização, incontornável quando os intervenientes são forçados a optar entre concorrer pelo preço com qualidade razoável ou concorrer pela diferenciação com um preço premium.
- Modelo de distribuição: reforços nas arquiteturas abertas de distribuição e na seleção de fornecedores (de produtos e serviços); reavaliação pelos produtores de canais alternativos de distribuição; necessidade de forte capacidade digital para suportar uma abordagem massificada ao aconselhamento.
- Modelo de receitas: pressão geral sobre o pricing dos produtos e da distribuição, decorrente de ofertas mais simples, maior transparência e competição entre players; comissionamento explícito dos serviços do distribuidor poderá levar ao reposicionamento upstream em produtos de baixo custo (por exemplo, ETFs).
- Cliente: maior visibilidade sobre os custos de produtos e serviços, bem como o impacto destes sobre a rentabilidade do investimento; mas novas regras podem gerar requisitos processuais acrescidos, gerando inibição ao desenvolvimento do mercado.
Globalmente, os impactos das mudanças em curso serão transversais à indústria da Poupança e Investimentos e vão requerer uma abordagem estratégica, não apenas uma visão processual de adaptação a exigências regulatórias. Os intervenientes no mercado devem endereçar tal desafio com sentido de urgência, considerando o tempo de ciclo necessário às adaptações requeridas versus os potencias prazos (reduzidos) de adoção efetiva de novas regras pela União.
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