AESE insight #62 - AESE Business School - Formação de Executivos

AESE insight

AESE insight

AESE insight #62 > Thinking ahead

Algo maior, forjado na paz

Maria de Fátima Carioca

Professora de Fator Humano na Organização e Dean da AESE Business School

A guerra na Ucrânia lançou uma nuvem densa sobre o mundo, devido aos danos que causa, à dor que inflige, ao medo que espalha. Quando os indicadores são o número de mortos e de refugiados está tudo mal. Não há guerras limpas! Mesmo com as iniciativas que se multiplicam de generosa ajuda solidária, mesmo com abundantes histórias de heroicidade e humanidade, protagonizadas seja por ucranianos, russos ou estrangeiros que, no terreno, fazem a diferença, a verdade é que na guerra, nesta também, sempre se pisam os direitos humanos, sempre há inocentes que sofrem! E nesta guerra, como em todas, as consequências serão graves e profundas, seja a nível económico, a nível político ou ainda a nível humano.

Dizia, na AESE, o saudoso Prof. Calleja, citando livremente Bertrand de Jouvenel, que “um problema político se diferencia de outro tipo de problemas porque não pode ser resolvido: só é passível de acordo, o que é uma coisa completamente diferente”. Enquanto uma solução satisfaz, por definição, todos os termos do problema, um acordo não chega a esse resultado. E por isso há que priorizar, negociar, utilizar critérios, criar planos B, ter aliados adequados, etc. Sobretudo, há que não esquecer que se procura chegar a um acordo que permite seguir em frente e que os acordos, mesmo que seculares, são, por definição, transitórios. As circunstâncias mudam e pode sempre chegar o momento de fazer um novo acordo mais adequado.

A Ucrânia é um bom exemplo deste grande dinamismo geopolítico que pode ocorrer. É bom relembrar que foi somente durante o tempo da União Soviética que adquiriu a sua atual configuração geográfica. Significa que falamos de um território unido politicamente há menos de 70 anos e como país independente ainda menos, 31 anos. Para além disso, foi criada a partir de sucessivas cedências e respetivos decretos, o que faz deste país uma complexa entidade multicultural e multiétnica. Curiosamente, ou nem por isso, é a Rússia, autoproclamada herdeira da antiga União Soviética, que de novo tenta redesenhar a linha de fronteira da Ucrânia.

Uma interessante característica desta diversidade étnica é, aliás, a diversidade religiosa. Enquanto a leste e no centro vivem predominantemente ortodoxos, de língua russa, a ocidente há ortodoxos, católicos, católicos gregos e judeus que falam sobretudo ucraniano, mas também húngaro, romeno e outros dialetos regionais.

Um dos eventos mais conhecidos que corrobora a dificuldade de manter unido um conjunto tão diverso de concidadãos foi o recente conflito sobre o papel de Moscovo e do Patriarcado de Moscovo na Ucrânia. Em linha com a independência da Ucrânia, em 2019, o Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, entregou em Istambul ao primaz da nova Igreja Ortodoxa da Ucrânia o “tomos”, ou seja, o decreto que confirma a criação da nova Igreja, independente da Rússia, com direito à plena autonomia do Patriarcado de Moscovo em matéria religiosa. A decisão não foi unânime. Pelo contrário, suscitou grande discórdia, mas o caminho trilhado foi simples e natural: enquanto algumas igrejas ortodoxas ucranianas se juntaram à Igreja Ortodoxa Ucraniana, outras recusaram e permaneceram no Patriarcado de Moscovo. E as duas coexistem hoje, cordialmente, nas mesmas cidades, nos mesmo bairros, entre vizinhos e amigos.

Ora, no plano político, não é a unidade nacional que está em causa já que esta foi assumida, depois consolidada com a independência e, quem sabe, reforçada com a declaração de guerra e a invasão russa. Neste momento, o que está em causa é o desejo de estabelecer, discricionariamente, novas fronteiras e a utilização da força para o conseguir. Nesse sentido, todas as diligências são poucas para encontrar um modo de convivência acordado e respeitado entre países.

Para tal, o papel da comunidade circundante que pode ser mobilizada para ajudar os partes a chegar a acordo é de extrema importância e são, por isso, de saudar, as severas sanções que, em uníssono, a Europa decidiu aplicar à Rússia. Primeiro porque são realmente penalizadoras, colocando a Rússia numa situação de isolamento financeiro e económico, mas sobretudo porque revelaram uma Europa de causas, unida, solidária e batalhadora, como nem na pandemia se tinha visto. Resta ter esperança de que o resultado seja mais eficaz do que aquando da aplicação de sanções à Coreia do Norte ou à Venezuela.

Porém o papel que a Europa está a desempenhar até agora não chega.  É necessário mais. Pode ser dissuasor da guerra, pode até viabilizar a paz, mas não o futuro. Para se chegar ao futuro não chega não destruir, há que o construir.

Neste sentido é muito inspirador o discurso de Martin Kimani, embaixador do Quênia, no Conselho de Segurança da ONU, a 22 de fevereiro. Começando por estabelecer um claro paralelo com a Ucrânia, relembra que o Quénia e a maioria dos países africanos nasceram com o fim de um império, as suas fronteiras não foram traçadas pelos próprios e que esse desenho não teve em consideração a identidade cultural das históricas nações africanas, pelo que também hoje, existem povos africanos que falam a mesma língua e vivem separados por uma fronteira. Contudo, prossegue Martin Kimani, se tivessem escolhido bater-se pela independência com base na homogeneidade étnica, racial ou mesmo religiosa, ainda hoje estariam num cenário de guerra sangrenta. Em vez disso, decidiram aceitar as fronteiras e lutar pela integração económica e política em termos continentais, no seio da união africana. Nas suas palavras “em vez de formar nações sempre a olhar para trás com uma nostalgia perigosa, escolheram seguir em frente por uma grandeza que nenhuma das muitas nações e povos africanos jamais tivera… não porque as fronteiras os satisfizessem, mas porque ambicionavam algo maior forjado na paz

Não há mais a acrescentar, senão a esperança de que hoje, na Ucrânia, mais além da paz também se ambicione algo maior, forjado na paz.

Publicado no JN 

Outros artigos

Inovação todos os dias

Jorge Ribeirinho Machado, Professor e Responsável Académico da Área de Operações, Tecnologia e Inovação da AESE Business School

Energia e guerra na Ucrânia: O adiar da agenda verde?

Francisco Vieira, Professor de Operaçções, Tecnologia e Inovação e Diretor do Programa Advanced Management in Energy | AMEG

Conseguirá Portugal absorver os fundos europeus?

Diogo Ribeiro Santos, Professor de Finanças da AESE e Diretor do Program Next Generation

A estatura do Presidente da Ucrânia

Eugenio Viassa Monteiro, Professor de Fator Humano na I.I.M.Rohtak (India)

Will Russia’s War Spur Trade Diversification?

Michael Spence, Project Syndicate

Photo: Frederic Scheidemann/Getty Images

Possible Outcomes of the Russo-Ukrainian War and China’s Choice

US-China Perception Monitor

Competing in the New World of Work: How Radical Adaptability Separates the Best from the Rest

Keith Ferrazzi, Kian Gohar, Noel Weyrich, Harvard Business Review Press

2024 Copyright AESE Business School :: Todos os direitos reservados :: Usamos cookies para darmos a melhor experiência no nosso site. Ao continuar a sua navegação iremos assumir que não tem nenhuma objeção com a utilização de cookies.
2024 Copyright AESE Business School :: Todos os direitos reservados :: Usamos cookies para darmos a melhor experiência no nosso site. Ao continuar a sua navegação iremos assumir que não tem nenhuma objeção com a utilização de cookies.