AESE insight #39 - AESE Business School - Formação de Executivos

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Europa aposta na Economia circular

José Ramalho Fontes

Presidente da AESE Business School e Professor de Operações e Tecnologia

Síntese de trabalhos da disciplina de Operações de alunos do 18º e 19º Executive MBA AESE


O que é a integração do clima na realidade europeia

Em abril de 2012, os negociadores do Conselho e do Parlamento Europeu chegaram a um acordo político provisório que consagra na lei o objetivo de uma UE com impacto neutro no clima até 2050 e uma meta coletiva de redução líquida das emissões de gases com efeito de estufa de, pelo menos, 55 % até 2030, em comparação com os valores de 1990.

Em plena presidência portuguesa da União Europeia este facto traz à nossa consideração o Green Deal e o programa de recuperação e resiliência NextGenerationEU que estão focados no desenvolvimento sustentável do planeta, atribuindo pelo menos 30% do total destes fundos a medidas relacionadas com a ação climática e a sustentabilidade ambiental. E entre estas medidas dá-se prioridade à redução das emissões em detrimento da sua eliminação, em relação a meta para 2030, e prevê-se a criação de um Conselho Consultivo Científico Europeu sobre as Alterações Climáticas, o estabelecimento de uma meta climática intermédia para 2040, etc. Embora este acordo político provisório esteja sujeito à aprovação do Conselho e do Parlamento, antes de passar por todos os trâmites formais do processo de adoção, os embaixadores junto da UE já aprovaram o texto de compromisso neste maio de 2021.

Estas medidas de enorme alcance económico, afetando as cadeias de valor e o comportamento dos europeus, surgem de uma evolução conceptual e ideológica que se pode reportar ao despertar da ecologia como área de militância cívica na defesa do ambiente, desde os anos 60, e como resistência à degradação de solos agrícolas – por exemplo, a cultura extensiva do algodão – ou à sucessiva descoberta de múltiplas lixeiras altamente tóxicas em zonas suburbanas ou em santuários naturais, primeiro nos países mais sofisticados e, posteriormente em países cada vez menos desenvolvidos.

No meio destas medidas, de certo modo longínquas, a Comissão enfatiza que não se trata apenas de política ambiental da responsabilidade dos governos, mas que estas medidas afetam todos os aspetos das nossas vidas e, ainda, informa sobre o que há de realmente novo no objetivo de neutralidade climática da UE e no Green Deal: a exigência de ações de todos os setores da economia e a inclusão das considerações climáticas e ambientais em todas, em cada uma, das áreas políticas da EU, expressão conhecida como integração do clima. Por exemplo, o setor de energia, em particular, exige uma transformação substancial que impacta na vida quotidiana, desde medidas para a qualidade das paredes e das janelas das habitações, às características dos aparelhos elétricos que usamos e, também, a forma como se viaja e que métodos de produção se usam.


A EU quer introduzir o modelo de economia circular

Neste âmbito, cada vez mais próximo do dia-a-dia do cidadão europeu, a EU quer introduzir o modelo de economia circular procurando, por exemplo, que os têxteis, os materiais de construção e os equipamentos eletrónicos sejam reparados, reciclados e reutilizados, a fim de diminuir o uso de matérias-primas primárias. Se, na perspetiva da EU a referência à economia circular, EC, já é uma realidade a impactar no quotidiano, para o referido cidadão europeu esta expressão ainda parece algo conceptualmente sugestivo e aspiracional, mas pouco prático embora a guerra aos plásticos de utilização única, a presença de microplásticos no mar e nos peixes sejam realidades muito presentes, particularmente nestes últimos meses de utilização intensiva de alimentação em sistema de take-away e de aplicação de medidas higiénicas em talheres e outros produtos de utilização pessoal.

A EC é uma nova etapa da preocupação ambiental que se sucede à gestão dos resíduos industriais e urbanos dos 80s. A expressão ‘economia circular’ é atribuída a Stahel (1976) e a Pearce e Turner[1] uma definição mais elaborada; em 1994 a Alemanha legisla sobre a EC, seguindo-se legislações semelhantes de outros países.

Da preocupação com o tratamento do lixo, dos resíduos de fim de linha, caraterizado pelos 3 RR, reduzir o uso, reutilizar e, por fim, reciclar, passou-se à  expressão cradle to grave, do berço à urna, antecipando a resolução do problema para a fase de projeto e produção em que se podem inserir medidas de prevenção de risco, de não inclusão de produtos tóxicos, como são bem conhecidos os casos do enxofre no petróleo, do amianto nas construções, do mercúrio em múltiplos produtos, etc. Na EC a expressão amplia-se para cradle to cradle de McDonough, Braungart[2] (2002), em que um resíduo é ponto de partida para um outro produto ou para uma nova forma de utilização.
Numa perspetiva mais estruturada e conduzida por parcerias entre instituições empresariais, fundações e consultoras a EC teve uma aceleração crescente nos encontros anuais do WEF, em Davos, com o envolvimento da McKinsey e Accenture, entre outras.


O relatório Europe’s Circular-Economy Opportunity

A partir de trabalhos iniciados em 2013, a publicação, em junho de 2015, do relatório Europe’s Circular-Economy Opportunity pelo McKinsey Center for Business and Environment, sistematizou conceitos, fez diagnósticos, desenhou processos e estabeleceu metas. Este extenso documento foi o resultado de uma parceria de conhecimento com a Ellen MacArthur Foundation, e a Stiftungsfonds für Umweltökonomie und Nachhaltigkeit, o novo ramo de economia ambiental da Deutsche Post Foundation. Em setembro de 2015 é publicado um resumo no McKinsey Quarterly, com as principais conclusões. Cf. Growth-within-a-circular-economy-vision-for-a-competitive-europe.

Neste documento refere-se que a adoção de princípios de EC poderá não só beneficiar a Europa em termos ambientais e sociais, mas também gerar um benefício económico líquido de € 1,8 trilião até 2030. Os resultados da modelagem de equilíbrio e um estudo comparativo do trabalho sugerem que, para a economia europeia em geral, a EC poderia produzir melhores resultados de bem-estar, PIB e emprego do que a atual trajetória de desenvolvimento. A modelagem para 2030 sugere que o rendimento disponível das famílias europeias poderia ser até 11 pontos percentuais maior no cenário circular em relação à trajetória de desenvolvimento atual, ou 7 pontos percentuais a mais em termos de PIB.

Olhando para os sistemas que satisfazem as três necessidades humanas básicas – mobilidade, alimentação e habitação – o estudo conclui que a adoção rápida da tecnologia é necessária, mas não suficiente para capturar a oportunidade circular. Em vez disso, os princípios circulares devem orientar a transição de forma diferente daqueles que governam a economia de hoje. Perseguida de forma consistente, a promessa económica é significativa e a EC pode ser qualificada como o próximo grande projeto de economia política europeia.

As propostas elaboradas são tão radicais e de rutura com o que se pratica atualmente que suscita entusiasmo nuns e ceticismo ou mesmo oposição noutros que se podem exprimir esquematicamente nestas duas afirmações:

  • Os defensores da Economia Circular, EC argumentam que ela oferece à Europa uma grande oportunidade para aumentar a produtividade dos recursos, diminuir a dependência e o desperdício de recursos e aumentar o emprego e o crescimento. Eles afirmam que um sistema circular melhoraria a competitividade e desencadearia a inovação, e identificam oportunidades circulares abundantes que são inerentemente lucrativas, mas permanecem não capturadas.
  • Outros, argumentam que as empresas europeias já aproveitam a maioria das oportunidades economicamente atraentes para reciclar, refabricar[3] e reutilizar, e sustentam que atingir níveis mais elevados de circularidade envolveria um custo económico que a Europa não pode arcar quando as empresas já estão lutando com os altos preços dos recursos. Eles ainda apontam para o alto custo económico e político da transição, que consideram globalmente impossível, dada a necessidade de convergência de uma miríade de protagonistas públicos e privados e da disponibilidade dos cidadãos para mudarem de hábitos sociais muito enraizados.


O estudo referiu, por exemplo, que o carro europeu médio permanece estacionado 92% do tempo, 31% dos alimentos são desperdiçados ao longo da cadeia de valor e o escritório europeu médio é usado apenas 35 a 50% do tempo, mesmo durante o horário de trabalho. Por consequência apontaram-se algumas orientações, entre outras:

  • Graças aos esquemas de partilha de viagens, condução autónoma, veículos elétricos e materiais melhores, o custo médio por carro-quilômetro pode cair até 75%;
  • Os processos industriais e modulares podem reduzir os custos de construção dos edifícios em 50 % em comparação com a construção tradicional no local, e as casas, preparadas para transformar a energia solar que recebem, podem reduzir o consumo de energia em 90 %;
  • A agricultura de precisão pode melhorar a eficiência da utilização de água e fertilizantes em pelo menos 20 a 30 % e, combinada com o plantação direta, pode reduzir os custos de máquinas, materiais e produtos em até 75 % tornando a alimentação mais económica pela brutal redução do desperdício.


Seis anos depois, estes exemplos estarão mais próximos da realidade quotidiana, de um algum modo, com os progressos verificados na condução autónoma e na crescente utilização do automóvel elétrico, assim como no maior aproveitamento da energia solar pelos domicílios, com a redução brutal do preço dos painéis fotovoltaicos e pela multiplicação da oferta de serviços integrados de energia por distribuidores de eletricidade em baixa tensão, em concorrência com os incumbentes, tanto de eletricidade como de combustíveis líquidos, gasolina ou gasóleo. Por exemplo, em Portugal, num estudo feito para o BCSD em maio de 2012, a McKinsey afirma que descarbonizar em Portugal será mais barato e eficaz. net-zero-Portugal-caminhos-de-Portugal-para-a-descarbonização.



Plataforma para Acelerar o Economia Circular (PACE) para dois loops

O WEF, Fórum Económico Mundial, continuando com o seu foco no desenvolvimento da EC e na sua metodologia de estabelecer parcerias para resolver os problemas complexos, em 2017 constituiu a Plataforma para Acelerar o Economia Circular, PACE, um acelerador de projetos e mecanismos de colaboração para impulsionar ações no sentido de aumentar a velocidade e a escala da adoção da EC.

No âmbito desta Plataforma, mais de 50 líderes empresariais e governamentais elaboraram uma lista das condições mais favoráveis ​​necessárias para a adoção generalizada da EC em todas as regiões, publicando-se o livro branco Harnessing the Fourth Industrial Revolution for the Circular Economy Consumer Electronics and Plastics Packaging, pelo WEF em colaboração com a Accenture Strategy.  Tal como ocorreu no relatório produzido pela McKinsey, e é típico dos trabalhos destas consultoras, neste documento diagnosticam-se os problemas e propõem-se soluções tecnológicas para aumentar a circularidade das cadeias de valor dos produtos eletrónicos de consumo[4] e das embalagens plásticas. Estes dois loops têm um potencial significativo de crescente criação de valor com múltiplos benefícios sociais, mas atualmente são fonte de enorme desperdício. Apenas 14% das embalagens plásticas são recolhidas para reciclagem – e apenas 2% são recicladas para nível de qualidade semelhante[5]; apenas 20% dos produtos eletrónicos descartados, a cada ano, são documentados como recolhidos para reciclagem.[6] Como consequência, o livro branco elenca cinco desafios comuns que precisam de ser superados para tornar esses dois setores mais circulares:

  1. Cadeias de valor opacas – Falta de transparência sobre a origem, conteúdo, condição e destino do material descartado.
  2. Design linear dos produtos – Como é característico de equipamentos tecnológicos em mercados em grande crescimento, não são consideradas alternativas de design circular porque não são entendidas ou contextualizadas como vantajosas.
  3. Bloqueio linear – Tal como os produtos, os modelos de negócio atuais incentivam o lançamento anual e, muitas vezes, espetacular de novas versões, bloqueando soluções circulares de aproveitamento de equipamentos viáveis e operacionais, que poderiam manter-se em uso por mais quatro ou cinco anos, no mínimo.
  4. Recolha de produtos descartados e logística inversa ineficientes – a não existência generalizada de locais para deposição do lixo eletrónico, impede a geração de fluxos com economias de escala suficientes para uma fragmentação competitiva do material.
  5. Infraestrutura de classificação e pré-processamento insuficiente – como consequência do anterior não há instalações eficientes de entrega, para que se estabeleçam fluxos de alguns produtos ou componentes necessários para reciclagem de alta qualidade.


Algumas áreas de intervenção dos princípios da EC

Os loops de materiais
Considerando a ampla variedade de estratégias da EC para diferentes fluxos de materiais e suas interdependências, torna-se cada vez mais importante estabelecer estruturas conceptuais que permitam avaliar não apenas medidas e melhorias específicas, mas também as suas contribuições gerais para o fecho de loops de materiais dentro da economia e procurando desenvolver ciclos de materiais ecológicos. Uma das tentativas de enquadrar e fundamentar essa discussão, passa por aplicar uma perspetiva sistémica e socio-metabólica que ainda não é consensual, mas já estão definidos e quantificados indicadores-chave para caracterizar a circularidade das economias nacionais e aplicá-los à economia global e à União Europeia (UE-27), mas ainda em níveis macro que não são percecionados pela maioria dos dirigentes empresariais e, muito menos, pelos cidadãos.

Contudo, em contraste com estas linhas conceptuais, o lixo, em geral, e os resíduos urbanos, RU, em particular, são omnipresentes em todas as sociedades e mais facilmente suscitam a imaginação e o empenho em serem aproveitados com base nos princípios da circularidade. Nas sociedades mais evoluídas constituem atividades já organizadas quer da responsabilidade das autoridades municipais ou nacionais, quer de empresas privadas a funcionar em regime de concessão, geralmente, com legislação e regulamentação bem definidas e circuitos claros e operacionais já é frequente uma aplicação generalizada, por exemplo, Ecoponto em casa da maiambiente premiado 2021. Apesar disso, a EU considera que ainda se está longe do que foi proposto na agenda da Estratégia Europa 2020, em que se pretendia ter a reciclagem de resíduos nos 50%, mas se atingiram apenas 42%, um valor inferior em 16%. Em Portugal atualmente a deposição direta de RU em aterro corresponde a 26% do total de RU tratados, muito superior ao número desejável, 10%.

Sem querer ser exaustivo, não deixo de referir os principais elementos desta proposta, revista para 2030, inseridos no pacote de EC da UE, para o final da sua utilização: elevar para 65% a reciclagem dos resíduos urbanos, com 75% de reciclagem dos resíduos de embalagens, assim como outras medidas relativas à deposição em aterro (até a um máximo de 10%), com a proibição de deposição em aterro de resíduos recolhidos seletivamente, e devendo promover-se instrumentos económicos para desencorajar o aterro sanitário, no que se refere às ações de fim de linha. Mas também se devem estabelecer medidas concretas, no outro extremo da cadeia, no seu ‘berço’ (cradle), para facilitar a posterior reutilização dos resíduos e estimular a simbiose industrial, e incentivos económicos aos produtores para colocar produtos mais ecológicos no mercado e apoiar sistemas de recuperação e reciclagem.

Na construção civil
Uma das áreas em que a EC identificou maior potencial de melhoria imediata no aproveitamento do valor dos materiais foi o dos materiais de construção civil que é responsável por uma parte muito significativa dos resíduos produzidos em Portugal (cerca de 1,5 milhões ton), situação comum à generalidade dos demais estados-membro da União Europeia em que se estima uma produção anual global de 870 milhões de toneladas de resíduos de construção e demolição (RCD). Para além das quantidades produzidas, estes resíduos apresentam outras particularidades que dificultam a sua gestão, entre as quais a sua constituição heterogénea, com frações de dimensões variadas e os diferentes níveis de perigosidade.

Contudo, procurando seguir o princípio do cradle to cradle, os especialistas estão a considerar que é necessário introduzir, a montante, nos projetos e nos métodos de construção esta nova variável para reduzir o consumo de materiais – o caso do cimento é emblemático e está em curso uma revolução nesse setor –, a redução dos transportes de matérias primas para diminuir a pegada carbónica, etc., assim como orientar arquitetos e engenheiros para a utilização de outros materiais, para serem mais exigentes na gestão térmica das habitações e, last but not least, inserirem características e propriedades aos edifícios que facilitem a sua demolição ou aumentem a sua validade. E no segundo cradle, no fim da linha, há cada vez mais obrigações legais e regulamentares estritas que apontam novos caminhos a desbravar para o melhor aproveitamento dos resíduos provenientes das demolições.

Na alimentação
O loop dos produtos alimentares é um dos que tem mobilizado de forma mais profunda todos os protagonistas desde cada um dos consumidores, aos fabricantes de produtos alimentares e aos seus fornecedores da agricultura ou pecuária. O escândalo dos 31% de desperdícios gerados ao longo da cadeia tem conduzido a muitas ações bem visíveis nas grandes superfícies, cada uma mais ‘verde’ que a outra (honi y soit qui mal y pense) e os agricultores a se orientarem para o biológico para a agricultura de precisão, para uma gestão com as boas práticas das operações, da contabilidade, dos recursos humanos, do marketing.

Por outro lado, os cidadãos são estimulados a mudar de hábitos alimentares, a recolher os restos, a consumir menos tendo em atenção que, atualmente, mais de 20% da população tem obesidade, aproximadamente 40% tem hipertensão e o número de indivíduos com diabetes tem vindo a aumentar consideravelmente, ultrapassando os 10%! Por estas razões, para não alongar o artigo não pormenorizo.


Os ecossistemas industriais da EC

Nos setores industriais em que há produção de equipamentos e a sua utilização na etapa seguinte da cadeia de valor, a transição para um modelo de negócio circular é uma tarefa ambiciosa que tem envolvido muitas empresas desejosas de melhorar o seu desempenho ambiental (no conhecido acrónimo ESG) e que obriga a repensar o modo como a organização cria, captura e entrega valor, um exercício propício para alcançar em simultâneo maiores rendibilidades e menores impactos ambientais negativos.

Por exemplo, um fabricante desse tipo de equipamento que pretenda adotar um modelo de negócios circular deve integrar-se mais profundamente nas operações de seus clientes, cocriar valor com os parceiros, enfatizando o valor da utilização dos seus produtos, em vez de se centrar no valor da transação, procurando lançar serviços novos e inovadores. Por exemplo, a fornecedora de equipamentos pesados Metso para a utilização em explorações industriais, otimiza o processo de operação das suas máquinas nos seus clientes e garante contratualmente os resultados, por exemplo, o custo por tonelada nas explorações mineiras, ou químicas; também assegura um maior tempo de atividade do seu equipamento, com maior produtividade e maior segurança do trabalhador e menores paragens para manutenção.

Naturalmente, os modelos de receitas mudarão, deixando de haver vendas de equipamento passando a pagamentos mensais de leasing, combinados com contratos de serviço que frequentemente são executados em períodos mais prolongados, o que já é muito frequente nos motores dos aviões. Em termos financeiros, isso representa de um fluxo de receita de despesas de capital (capex) para um fluxo de receita de despesas operacionais (opex). A divisão de motores industriais da ABB, por exemplo, oferece diferentes níveis de contratos de serviço para estender a vida útil de seus produtos e, entre essas opções, oferece um sistema de devolução desenvolvido em cooperação com a Stena Recycling, uma empresa de reciclagem industrial parte do ecossistema da ABB: depois da utilização contratada, os produtos ou componentes são recondicionados e podem ser usados pela ABB no fabrico de novos motores ou revendidos a terceiros para uso nos seus produtos.

Um modelo de negócios circular suscita a criação de um ecossistema formado por empresas e prestadores de serviços, atuando em parceria estratégica, com outros fornecedores de tecnologia e serviços externos. Por exemplo, numa pedreira fora de Gotemburgo, Suécia, a Volvo Construction Equipment (CE), o seu cliente Skanska (uma construtora) e outros parceiros do ecossistema (fornecedores de internet, de tecnologia de automação e de outros equipamentos e serviços) criaram um estaleiro da Skanska em que se realiza cada estágio de escavação, britagem primária e transporte para britagem secundária, com máquinas elétricas autónomas Volvo CE e um sistemas de gestão integrado. Os testes realizados apontam para uma redução de 98% nas emissões de carbono, uma redução de aproximadamente 70% nos custos de energia e uma redução estimada de 25% nos custos operacionais totais. Metas de lucro e objetivos ambientais tornaram-se efetivamente complementares.

Um outro caso interessante é o da Google que economiza centenas de milhões de dólares todos os anos gerindo os seus servidores com eficiência. ‘Primeiro, fazemos a manutenção para manter os servidores em utilização pelo maior tempo possível, depois, recondicionamos servidores antigos e os refabricamos, uma tradução direta e muito expressiva. Finalmente, vendemos peças para mercados secundários e o que resta é reciclagem.”


Os produtos de utilização corrente
O caso dos telemóveis
O relatório Europe’s Circular-Economy Opportunity, referido acima, apela à noção de crescimento interno – growth within – porque se concentra em obter muito mais valor dos ativos existentes, dos produtos e materiais. Os conceitos propostos baseiam-se em três princípios: preservar e aumentar o capital natural, otimizar os rendimentos dos recursos em uso e promover a eficácia do sistema e minimizar as externalidades negativas. Deste modo, o crescimento interno permitirá múltiplos mecanismos de criação de valor dissociados do consumo de novos recursos, que são finitos.

No que se refere aos telemóveis, o custo de refabricação[7] poderia ser reduzido a metade, previa a Comissão, se fosse mais fácil desmontá-los; estima-se que se se recolherem 95% dos telemóveis, poderão poupar-se mais de mil milhões de euros em custos de materiais de fabrico. Aquilo que, nessa ocasião, parecia longínquo começa a ser uma realidade organizada na UE porque grandes empresas ligadas à distribuição de telemóveis estão a oferecer produtos recondicionados, a partir da utilização de módulos e peças usadas e novas, visto que a arquitetura do produto já permite a devolução ao uso ou a desmontagem com valor económico, assim como o tratamento dos materiais que devem ser recuperados e o que deve ser considerado lixo[8].

Adicionalmente, as próprias marcas, mesmo a icónica Apple, já oferecem ao mercado produtos usados e, como aconteceu, no século passado com os automóveis, este novo mercado já está segmentado em semi-novos, usados, com ou sem garantia, etc.

Acrescente-se uma terceira perspetiva com que o mercado dos telemóveis é olhado pela estratégia de fundo da EU: pôr em causa a política agressiva de lançamento de novos modelos que, sem serem verdadeiramente necessários, criam um vasto oceano de produtos em ótimo estado de funcionamento, a caminho do lixo.


Os automóveis –a diretiva ELV, End of Life Vehicules, e as leis de takeback
A mesma publicação, Europe’s Circular-Economy Opportunity, propunha que, no segmento dos veículos comerciais ligeiros existisse a possibilidade de passar da reciclagem à remodelação, porque as taxas de recolha são já elevadas. Estimava que se poderiam poupar 6,4 mil milhões de euros por ano em consumos de material (15% do orçamento global desta medida) e 140 milhões de euros em custos de energia, além de reduzir as emissões de CO2 em 6,3 milhões de toneladas.

Esta medida corresponde a uma nova etapa na implementação da primeira lei de takeback, aplicada aos veículos automóveis em fim de vida que geravam cerca de oito a nove milhões de toneladas de resíduos anualmente na União Europeia (UE). Trata-se da Diretiva ELV (End-of-Life Vehicles and Producer Responsibility), de 2000, a primeira do programa da Comissão Europeia para organizar os fluxos de resíduos prioritários, que visava prevenir a poluição e tornar mais ecológicos o desmantelamento e a reciclagem de veículos. De acordo com a Diretiva, os fabricantes deviam esforçar-se por projetar e produzir veículos de modo a garantir que a maioria dos componentes dos veículos colocados no mercado após o dia 1 de julho de 2003, não contivessem matérias perigosas, e incluíssem mais materiais recicláveis, usando as diretrizes da Organização internacional de Normas (ISO) para a rotulagem e identificação dos componentes do veículo, estabelecendo prazos para as taxas de recuperação de materiais, etc.

Mas o mais exigente desta diretiva era responsabilizar os produtores pela totalidade, ou por uma proporção significativa, dos custos das medidas de recolha e recuperação estabelecidas. E os Estados Membros da EU, desde essa altura, são obrigados a estabelecer sistemas certificados de recolha e tratamento dos veículos em fim de vida, em instalações de tratamento autorizadas, da responsabilidade de desmontadores devidamente licenciados, assim como a organizar um sistema de cancelamento de registo de veículos baseado num certificado de destruição, de modo que o último titular de um veículo em fim de vida possa eliminá-lo gratuitamente (“devolução gratuita”). Finalmente, os fabricantes de veículos eram obrigados a compilar dados específicos e relatar regularmente às autoridades designadas, compreendendo-se que, atualmente, os automóveis já possuam cerca de 75% dos seus materiais incluídos no conceito circular.


Em resumo
A EU ao dedicar mais de 30% dos fundos do NextGenerationEU e Just Transition Fund para a transição climática e recursos naturais (em Portugal cerca de 20%, no PRR), e ao se empenhar ativamente na promoção dos princípios da EC não está a tratar apenas de política ambiental na generalidade dessa expressão, mas a afetar todos os aspetos das vidas dos cidadãos europeus, das nossas vidas.

O que é realmente novo sobre o objetivo de neutralidade climática da UE e do Green Deal é que eles exigem ações de todos os setores da economia e integram as considerações climáticas e ambientais em todas as políticas da EU, em que setor de energia, em particular, é objeto de uma transformação substancial, porque a produção e a utilização de energia são atualmente responsáveis ​​por 75% das emissões de gases com efeito de estufa da EU, e faz parte de todos os aspetos da nossa vida vulgar.

A mudança para uma economia mais verde é um elemento importante da transição para uma sociedade com emissões líquidas zero e requer ação em todas as frentes, como já referido, no modo como projetamos, usamos e demolimos os edifícios, como nos deslocamos, assim como produzimos os alimentos, que muitas vezes dependem de pesticidas e fertilizantes que são prejudiciais para o ar, o solo, a água e a vida selvagem.

O câmbio pretendido também influi no modo como olhamos para as florestas, importantes sumidouros de carbono, que devem ser objeto de uma gestão florestal mais sustentável, e para as nossas decisões de investimento individual, que deveriam promover projetos mais sustentáveis ​​e ecologicamente corretos.

Um último aspeto desta influência no quotidiano, ainda não elencada até aqui, mas que se pode considerar como um resumo e uma ‘call to action’, refere-se à forma como produzimos e usamos as roupas, como as não reciclamos nem reutilizamos, a fim de diminuir o uso de matérias-primas primárias. Será, talvez, a maior surpresa para o cidadão comum tomar consciência que a ITV, a Indústria Têxtil e Vestuário, como é conhecida em Portugal, a indústria da moda, é a segunda mais poluente do mundo, porque extrai aproximadamente 65.000 milhões de toneladas de matérias primas, por ano, e cerca de 80% desses materiais tornam-se resíduos, as mais das vezes depositados em aterros, o que representa uma perda financeira e ambiental muito elevada.

Algumas marcas do setor da moda têm aderido timidamente à economia circular e apelando a um consumo mais consciente, sendo a Patagonia a pioneira, desde 1975,  e a que tem levado os princípios da EC a fundo desde as matérias primas que usa, como as transforma, como as utiliza na produção das roupas, como as repara e reintroduz no mercado, etc., assim como recomenda aos seus clientes que não comprem os seus produtos, porque são de alta qualidade, multiusos, reparáveis e, finalmente, podem devolver-se à fábrica para que sejam devidamente reciclados ou destruídos mais ecologicamente. Ver política relativa a reparações grátis Repair-Turnaround at Patagonia.

É convicção da EU que estes investimentos e estas ações para uma EC podem proporcionar um estímulo à economia europeia relevante, a uma Europa que está a passar por uma mudança generalizada no comportamento do consumidor e em que alguns líderes empresariais estão a implementar com sucesso estratégias de produto e de serviços com modelos de negócios inovadores.



[1] Economics of natural resources and the environment / D.W. Pearce, R.K. Turner, 1990

[2] Cf. Cradle to Cradle: Remaking – The Way We Make Things, William McDonough, known as the “father of the circular economy”; 2017 Fortune Award for Circular Economy Leadership in Davos during the World Economic Forum.

[3] Verbo ainda não assumido pelos corretores!

[4] Accenture – Lacy, Peter & Rutquist, Jakob, Waste to Wealth: The Circular Economy Advantage, 1st ed. English: Palgrave Macmillan, 2015

[5] World Economic Forum and Ellen MacArthur Foundation, The new plastics economy ‑ Catalysing action, 2017.

[6] United Nations University, E‑waste Rises 8% by Weight in 2 Years as Incomes Rise, Prices Fall [Press release], 14 Dec. 2017.

[7] Tradução direta do inglês remanufacturing, ainda não admitida pelos corretores de texto.

[8] A Electrão, a entidade portuguesa gestora dos fluxos de equipamentos elétricos, pilhas e baterias e embalagens considera que a reciclagem de 1 milhão telemóveis permite recuperar cerca de 22,7 kg de ouro, 249,5 kg de prata, 9,1 kg de paládio e 9.071 kg de cobre.

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